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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

18 anos

Finalmente a tão sonhada maioridade chegou. Marianna completou dezoito anos! Da noite para o dia dezoito anos. Junto com seu aniversário, um mundo infinito de possibilidades se abriam para ela. Coisas que até ontem eram proibidas, passaram a fazer parte de seus desejos. 
Se bem que algumas coisas proibidas já faziam parte de sua rotina: como beber e fumar. Marianna colocou seu primeiro cigarro na boca quando tinha quinze anos. Quando Marianna saía,  tinha que estar em casa até no máximo meia-noite. Quando finalmente fez dezoito anos, acabou aquela história de meia-noite. Marianna só voltava para casa quando queria, sempre acompanhada de sua amiga Margarida. 


Um outro antigo desejo de Marianna finalmente se concretizou. Pôde finalmente fazer sua tatuagem. Todos os seus conhecidos tinham uma: Tio Ed, seus antigos amigos da DPT, Laura, a única exceção era Margarida. 
Vários tatuadores frequentavam a Feirinha que acontecia toda quinta-feira à noite. Um em especial era o mais requisitado pelos jovens, seu nome era Carlos, mais conhecido como Carlinhos. Um dia Marianna perguntou para ele qual era o preço de uma tatuagem. Ele respondeu sua pergunta com outra pergunta. Primeiro queria saber quantos anos Marianna tinha. A resposta na época era dezessete anos. Então Carlinhos pediu que Marianna só o procurasse quando completasse dezoito anos, pois não tatuava menores de idade. (Carlinhos teve que responder na justiça por ter feito uma tatuagem em uma garota menor de idade e não queria passar por isso de novo). 

Marianna teve que ir na Feirinha três vezes seguidas para encontrar Carlinhos. Ele tinha um estúdio e muitas vezes tatuava até tarde. Assim que o avistou Marianna combinou que no próximo domingo Carlinhos iria até sua casa. 

Domingo chegou e Carlinhos foi até a casa de Marianna, levando junto sua namorada Cida, além de todo o material necessário para a tatuagem.   Marianna achava Cida a garota mais sortuda do mundo, por namorar um cara tão legal quanto Carlinhos. 


A mãe de Marianna quase teve um colapso ao saber que sua filha ia se tatuar. Ao subir a escada que dava acesso a sua casa, a mãe de Marianna virou o pé e teve que ser levada ao pronto socorro. Marianna achou que a mãe tinha feito isso de propósito. Mesmo assim ela continuou com seu objetivo.

Entre tantos desenhos, Marianna optou por um tribal nas costas. Assim em um lugar estratégico, não corria o risco de enjoar e se arrepender mais tarde. Também só o mostraria quando quisesse usar uma blusa aberta nas costas. Marianna tinha o grave defeito de se enjoar das coisas rápido demais. 

Antes de começar Marianna ligou o som e colocou um CD do The Doors, cuja segunda música era "Riders on the storm". Carlinhos usava luvas e agulhas descartáveis. Sua tinta era importada. Marianna sentou-se em uma cadeira e usou uma pequena almofada para apoiar os braços. Marianna contou-me que a princípio a tatuagem doeu muito para fazer, doeu porque Marianna estava tensa demais. Aos poucos Marianna foi relaxando e já não sentia mais dor. Restava apenas o barulho da máquina e a voz do Jim Morrison tocando ao fundo. Quando Carlinhos finalmente terminou a tatuagem, a mãe de Marianna chegou do hospital com o pé enfaixado amparada em par de muletas.





segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tentativa frustrada

O ano era 1996. O mês era dezembro. Marianna estava prestes a concluir o ensino médio (antigamente chamado de 2º grau). Cursar uma universidade  era um sonho cada vez mais distante. Sua mãe não tinha condições e nem queria pagar uma Faculdade. Uma Universidade pública era apenas para os alunos mais bem preparados, a maioria saídos de escolas particulares. Realmente isso não fazia e até hoje não faz sentido. Naquela época não havia Enem, nem cotas para afro descendentes e muito menos para alunos de escolas públicas.


A prioridade para Marianna era conseguir um trabalho, que pagasse um salário suficiente para que ela mesma pudesse custear seus estudos. Mas sempre que começava a trabalhar, sua mãe exigia que ela ajudasse nas despesas da casa, pagando uma conta de água ou luz. O pouco que sobrava era para ela se manter.  Se Marianna tivesse paz em casa, não se importaria de ajudar. Mas sua mãe sempre enchia a casa com suas amigas lésbicas que vinham bebiam, comiam, dormiam e iam embora.

O maior desejo de Marianna era sair de casa. Mas filha da sua mãe só sairia de casa se fosse casada. Era uma ironia e tanta! Como uma mulher que morava com outra mulher poderia ser tão antiquada e preconceituosa.


Marianna passava a maior parte do dia fora de casa. Quando estava trabalhando era de casa para a escola e da escola para a balada. Nos fins de semana estava sempre na casa de sua amiga Margarida. Lá ela ficava o dia todo ouvindo música e trocando ideias. Um dia quando o pau quebrou na casa de Marianna, Margarida ofereceu sua casa para Marianna morar. Marianna juntou suas coisas e foi-se. Mas sua mãe fez um escândalo na porta da casa de Margarida, chorou e ameaçou chamar a polícia. O pai de Margarida era um senhor idoso que não tinha a saúde muito legal, e para não prejudicar o pai de sua amiga, Marianna voltou para casa. Mas Margarida não deixou de gostar de Marianna. Margarida ganhou mais a amizade de Marianna e o ódio mortal de sua mãe. 

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Opções



O fato da mãe de Marianna viver com outra mulher não era o problema. O problema era a falta de diálogo e o autoritarismo de sua genitora. Tudo era a MÃE quem decidia, pronto e acabou. Ninguém podia falar nada. A partir do momento em que sua mãe largou do pai para viver com outra mulher isso afetou drasticamente a vida dos filhos. Marianna era a mais velha e tinha o caráter e a índole praticamente formados, apesar da pouca idade. Mas e seus irmãos menores? Isso era um assunto velado entre eles. Era terminantemente proibido falarem sobre a homossexualidade de sua mãe. Depois de catorze anos dentro de um casamento heterossexual, se tornar lésbica da noite para o dia foi uma decisão que perturbou a todos. Se simplesmente a mãe chamasse os filhos para conversar e abrisse o jogo, falando a verdade apenas uma vez na vida tudo teria sido mais fácil, mas a mãe deixou tudo ficar subentendido. Marianna às vezes tentava se colocar no lugar da mãe: vivendo infeliz dentro de um casamento, só porque a "sociedade" cobra. Mas se a lésbica fosse Marianna, será que sua mãe a aceitaria?  Será que a mãe a defenderia na frente dos vizinhos?


Quando somos responsáveis por outras pessoas e as decisões que tomamos podem prejudicar os outros, temos que pensar antes de agir. Marianna nunca soube o que passava na cabeça dos irmãos, nunca soube o que eles sentiam.  Outro agravante era o fato de Soraia a companheira da mãe de Marianna ser alcoólatra, beber e encher a cara da sua mãe de porrada. Houve uma ocasião em que a mãe de Marianna e Soraia saíram nos tapas e socos. No meio da confusão a mãe gritou socorro e Marianna para defendê-la pegou uma faca de mesa (dessas sem corte que a gente usa para passar margarina no pão)  e partiu para cima de Soraia. Pobre Marianna! Soraia tinha tanta força que partiu a faca em duas apenas com uma das mãos. No final a mãe e Soraia fizeram as pazes e foram dormir juntas agarradinhas. E Marianna? Ficou como a vilã da história. A adolescente rebelde que tem a “coragem” de pegar em uma faca e tentar “matar” outra pessoa.


Depois de tantas brigas, quebradeiras e bebedeiras, os vizinhos já estavam acostumados.  No começo até chamavam a polícia. Por fim até a polícia se cansou. E um dia a mãe de Marianna se cansou também, colocou Soraia para fora, mas antes arranjou outra companheira: Tânia. Um pouco mais velha e mais madura. Tânia apresentou para a mãe de Marianna o meio onde as pessoas GLS viviam. As boates, os bares. A mãe de Marianna parecia um adolescente, que nunca tinha saído na vida. Marianna passou a ser a mãe dos irmãos. Assim como sua amiga Margarida. Só que a mãe de Margarida havia morrido de câncer. 

Marianna e Margarida. Duas amigas, filhas-mães sem terem filhos.


sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Margarida

Marianna e Tio Ed vão embora da Feirinha e pegam o ônibus juntos. O silêncio entre os dois é constrangedor. Marianna estava triste demais para falar algo. Como naquele horário o trânsito era bom, em menos de vinte minutos Marianna se despede de Tio Ed e desce. Do ponto do ônibus até sua casa ela caminha sozinha pela rua escura e deserta, não tem medo, pois conhece todos os moradores do bairro, nos dias de hoje se ela tentasse fazer algo semelhante, seria assaltada na primeira esquina ou coisa pior. O ano é 1996, estamos em uma quinta-feira, todos estavam dormindo em sua casa. A mãe ronca ao lado de Soraia Sapatão, os irmãos menores também dormem. Mas Marianna custa a pegar no sono. 


No outro dia pela manhã, sua mãe está de ótimo humor: canta e ri, como se nada tivesse acontecido. Marianna decide não se deixar abater, finge que nada aconteceu. Prefere não discutir com sua mãe, porque sabe que no fim a discussão não vai levá-la a lugar nenhum. Ao contrário, vai deixá-la ainda mais chateada. O dia passa rápido Marianna aproveita e devora um livro que tomou emprestado na biblioteca. À noite vai para escola, pois se continuar matando aula vai terminar o ano tomando bomba. E ela que nunca perdeu uma média sequer, não vai se dar ao luxo de manchar seu boletim com uma nota vermelha. Há muito tempo que deixou de ser a primeira da classe, mas suas notas ainda são boas. 

No sábado resolve ir para a pracinha e fica um pouco deslocada ao perceber que seus antigos amigos da DPT a evitam. Mas ela é osso duro de roer e resolve ficar assim mesmo. Então ela dá uma volta na praça e se dirige para o bar do Tiãozinho. Nesse bar toca apenar rock, existe uma vitrola de CD dessas que você coloca uma ficha e pode escolher duas músicas. Mas as opções disponíveis são apenas o rock em todas as suas vertentes: nacional, metal, progressivo entre outros. Nada de axé, pagode e muito menos sertanejo. Os frequentadores desse local são todos roqueiros. Marianna senta-se no balcão e pede uma cerveja (ela prefere um vinho, pois faz efeito muito mais rápido, num instante ela já está alta) pois no bar do Tiãozinho uma garrafa de vinho é muito cara. Aproveita e pede uma ficha e escolhe duas músicas Stairway To Heaven do Led e Rock And Roll All Night do Kiss só para dar uma animada. Nesse momento chega Tio Ed acompanhado de uma moça que Marianna não conhecia. Seu nome: Margarida.


Margarida era muito branca, quase pálida cabelos pretos lisos e repicados, os olhos pretos. Vestia uma jaqueta jeans com a foto do Jim Morrisson, que dava para ver perfeitamente que outrora pertenceu a alguma velha camiseta e foi costurada a mão nas costas da velha jaqueta.


Marianna a princípio, pensou que Margarida fosse no máximo um ano mais velha do que ela, muito tempo depois descobriu que a diferença de idade entre as duas era de sete anos. Tio Ed as apresentou e os três ficaram bebendo e trocando ideias. De longe os caras da DPT ficavam observando  "Sereia", que começava a nadar pelas águas com suas próprias "nadadeiras".

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Uma luz

Dor! Essa é a palavra que exprime o que Marianna sente agora! Dor muita dor! Algo insuportável!E como a dor é subjetiva as pessoas que passam pela rua, não percebem o que vai no íntimo da jovem que bebe seu vinho lentamente direto no bico. Vinho quente, como as lágrimas que caem sem parar. Nunca em sua vida Marianna se sentiu tão sozinha! Tudo que ela quer é ir embora da cidade, do estado, do país. Para algum lugar onde ninguém a conheça. Onde possa começar de novo da estaca zero. Onde ninguém vai apontá-la na como sendo filha da mulher que vive com Soraia Sapatão. Mas no fundo ela sabe que para qualquer lugar que ela for, seus problemas irão com ela. Sabe também que eles não irão desaparecer como um passe de mágica.


Com esses pensamentos Marianna não percebe que uma pessoa pára na sua frente e começa olhar fixamente para ela. Ao levantar a cabeça seu olhar vai de encontro com o de Tio Ed. Tio Ed é um cara mais velho, tem aproximadamente uns trinta anos. Cabelos grandes, rockeiro. Na verdade seu nome é Edvaldo. E como ele é fã do Iron Maiden,  cujo o mascote é uma “linda” caveira conhecida como Eddie e como ele é um dos caras mais velhos que curte rock, surgiu a homenagem.


 Marianna pergunta se ele quer vinho, mas o que ele quer mesmo é um cigarro, Marianna tira o maço do bolso e entrega-o a Tio Ed. Ele estranha o fato de Marianna está sozinha sem os caras da DPT. Mas tudo é muito doloroso e ela muda de assunto. Marianna não conhece muito Tio Ed, só de vista, então ela prefere não se expor. Tio Ed fala que já é tarde e precisa ir embora. Marianna pergunta se pode ir com ele, afinal eles moram em bairros próximos e pegam o mesmo ônibus para irem para casa. Tio Ed não se opõe, até gosta da companhia. Era bom ser visto com uma moça de dezessete anos, só para variar. Tio Ed não tinha namorada, nunca tinha sido visto beijando alguém, seu negócio era muito rock, muita bebida e cigarro. Marianna também não tinha namorado, seus relacionamentos não duravam mais do que um mês. Todos os caras com quem havia ficado, a entediavam. E o medo de ter que apresentar alguém para sua mãe, e ver a velha colocando defeito em suas escolhas iam adiando um namoro mais sério. Se os amigos de Marianna não prestavam para sua mãe, com namorados a história seria parecida. Assim quando ela achava que estava começando a gostar de alguém, preferia terminar. Muitos achavam que ela fazia pose e só estava a fim de curtir com a cara dos menos desavisados. Na verdade ainda não tinha surgido a pessoa certa e ela torcia para que esse dia não demorasse muito para chegar. Assim Marianna levanta-se da calçada e vai embora caminhando ao lado de Tio Ed. 



segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Desencontros

Marianna está deitada em sua cama estreita no quarto que divide com os dois irmãos. Nesse momento ela está lendo um livro. Aliás Marianna lê tudo o que cai na sua mão (quando está no banheiro lê até rótulo de shampoo), deixa o livro um pouco de lado e começa a fazer um balanço de sua vida, desde que conheceu os caras da DPT. Os finais de semana tem sido intensos. Com os amigos conheceu vários lugares: Parques, barzinhos onde só se toca rock, outros bairros que Marianna nem sabia que existiam. Mas o melhor de tudo era sentir que estava viva. Com seus amigos ela podia ficar trocando ideias por horas e horas. Assim ela passava a ver a vida de outra forma, por um outro ângulo. 


Recentemente ela pediu para sair da padaria. O trabalho no comércio não é muito legal. Às vezes aparecem uns clientes grossos e mal educados que querem descontar sua raiva em pessoas que eles julgam serem menores. Como Marianna está no final do ensino médio, pensa em conseguir um emprego que pague melhor e que assine a carteira. Um emprego que não a deixe tão cansada a ponto de ter que dormir na sala de aula. Trabalhar e estudar não é fácil. Mas ela precisa. Sua mãe ganha pouco e mal dá para pagar as despesas. Então ela trabalha, para de uma certa forma ser independente. Ter seu próprio dinheiro para comprar o que mais gosta: CD's, livros, revistas de música. E também para sustentar seu vício de cigarro e vinho. Imaginem toda vez que ela for na Feirinha ter que pedir dinheiro para pagar o ônibus! 
Mas a amizade com os caras da DPT não agrada em nada sua mãe, que teme que algo de ruim possa acontecer com Marianna. Ela é pobre e preconceituosa, não admite que os amigos de sua filha residam na favela. Para a mãe, Marianna tem que andar com pessoas melhores financeiramente, pessoas que possam "agregar", ao invés de cinco pés rapados que não tem onde caírem mortos. Marianna discorda e acha que seus amigos são tão bons, quanto qualquer pessoa que tenha grana. 


Nesse dia em questão, quando ela está lendo, seus amigos vão até sua casa. Porém Marianna não os ouve chamarem no portão. A mãe os atende. Eles perguntam por "Sereia". A mãe que detestava o apelido da filha, faz questão de corrigi-los dizendo que "MARIANNA", não estava. E ela ainda diz mais: Diz que sabe que os rapazes moram na favela e picham muro, e se eles se aproximarem de sua filha novamente, pedirá que seu tio que é policial dê uma lição neles, afinal ela ainda é menor de idade. Tem dezessete anos. Os rapazes vão embora assustados e decididos a atenderem o "pedido" da mãe. 
Mais tarde como é quinta-feira Marianna mata aula para ir na Feirinha. Chegando lá encontra com os caras da DPT. Killer vai logo despejando que não queria confusão e avisa que nunca mais conversarão com Marianna. As lágrimas rolam pela face da jovem. O que poderia ter acontecido para que seus amigos a tratassem daquele jeito? Ela fica sem entender e pergunta o que aconteceu. Punk Doido é categórico e fala na lata tudo o que houve no portão de sua casa naquela tarde. Marianna se desespera dizendo que a mãe não tem nenhum tio policial, que é tudo invenção. Mas o mal está feito. Eles não a querem por perto. As namoradas de Mito e Ventania até que tentam defendê-la, lembrando da loucura da mãe de Marianna. Mas o medo fala mais alto.


Marianna chora, sai correndo pensando na maldade da mãe. Pensando que a mãe ganhara mais uma vez. Novamente tinha destruído uma amizade da filha. Marianna entra no bar onde compram bebidas. Pede uma garrafa de vinho. Abre a garrafa e começa a tomar no bico, senta-se na calçada e chora. A mãe pode tudo. Pode ser homossexual, adúltera, violenta, pobre e prepotente. Marianna pode ser só e não ter amigos, é tudo o que sua mãe quer. 


sábado, 9 de outubro de 2010

Os novos amigos

A princípio o que chamou atenção de Marianna foi o visual dos rapazes: Mito e Ventania eram os mais altos, aproximadamente um metro e noventa. Punk Doido exibia um moicano na cabeça, falava esquisito, pois tinha a língua presa. Fedia demais pois se recusava a tomar banho. Usava um capão preto e quando queria conhecer uma menina, passava um desodorante debaixo do braço que sempre trazia em um dos bolsos do capão. Aquilo fazia com que ele ficasse com um fedor pior ainda. 




Guerrero (o certo é escrever Guerreiro, mas ele assinava errado mesmo) falava com uma convicção e tinha cara de mau. Killer tinha uma corrente com um cadeado no pescoço. Segundo ele para que não o roubassem. Todos eles eram morenos, com os cabelos bem crespos. Marianna e a irmã desceram do ônibus. Combinou de encontrar os novos colegas na pracinha da igreja no sábado seguinte.

O sábado chegou. Marianna foi até a pracinha e aguardou os caras, mas eles demoraram porque moravam em outro bairro e tinham rixa com os jovens do bairro onde se localizava a pracinha. Quando chegaram Marianna conversava com Saulo e ele se assustou com a presença dos rapazes. Questionou o que eles faziam ali, já que estavam proibidos de frequentarem aquele local. Era uma espécie de território inimigo. Eles vieram em missão de paz, apenas para conversarem com Marianna. Mito e Ventania trouxeram suas namoradas. Guerrero, Punk Doido e Killer vieram sozinhos. Até que foi bom voltarem na pracinha, depois de terem sido expulsos de lá. Outra coisa que intrigava Marianna era o apelido dos rapazes. Para que apelidos? A resposta era simples: todos eles eram pichadores de muro. Marianna não gostou da história afinal pichação não era certo. Imaginem a situação: uma pessoa trabalha, compra uma tinta, pinta o muro da sua casa de branco e vem uma pessoa e picha, estragando tudo. Monumentos, patrimônios públicos, edifícios e tudo mais. Os rapazes faziam parte de uma turma que se intitulava DPT que queria dizer Doidos Pichando Tudo. De acordo com eles a pichação era uma forma de se expressar,  desafiando as leis, fugindo da polícia e disputando com as outras turmas quem conseguia pichar nos locais mais altos e difíceis.


Saulo avisou Marianna que aqueles caras eram sujeira. Mas Marianna era do contra. Detestava que alguém falasse o que ela tinha que fazer. Como tinha que agir. Dessa forma ela gostou dos rapazes e a atração foi mútua. Todos eles tinham histórias parecidas. Pais divorciados, alcoolismo em casa, surras constantes. A diferença é que Marianna morava em um bairro, na periferia mas um bairro, com ruas, asfalto, comércio e escola. Seus novos amigos moravam em uma favela, onde as casas eram em sua grande maioria humildes, havia muitos becos, esgoto à céu aberto, miséria, drogas e tiroteio. Muita gente tem uma falsa ideia das favelas. Além de tudo isso que eu cito, nas favelas moram muitas pessoas que são trabalhadores, pessoas que acordam cedo todos os dias para trabalhar. Pessoas que infelizmente não tiveram muitas oportunidades de escolhas na vida. 


Marianna aprendeu que seus novos amigos eram muito mais legais do que os caras que frequentavam a pracinha da igreja e mais diferentes dos caras que frequentavam a Feirinha. Eles não se importavam que a mãe de Marianna fosse homossexual, eles nem ligavam prá isso. Todos eles trabalhavam. Cada um de um jeito. Servente de pedreiro, entregador, balconista, vendedor e faxineiro. Marianna também tinha mudado de emprego. Já não era mais babá. Atualmente trabalhava em uma padaria de dia e estudava à noite. Já que Marianna iria fazer parte da turma, também tinha que ter um apelido. Depois de muito pensar seus amigos decidiram que seu apelido seria Sereia. Ela era ideologicamente contra a pichação, tanto é que nunca pichou. Jamais em sua vida pegou em uma lata de spray. Os caras é que pichavam "Sereia", como se fosse ela. Sua fama cresceu. Todos queriam saber quem era "Sereia". Ela nunca desmentiu que ela não era pichadora. Deixou que todo mundo pensasse o que quisesse. 

Outra coisa que eles faziam de ilegal era fumar maconha. Eles até que ofereceram para ela, mas Marianna recusou e eles não insistiram. Marianna tinha muito medo das drogas. Já tinha lido em vários livros o que acontece com jovens viciados. Afinal ela já fumava cigarro e bebia vinho (quer vício pior que o do cigarro e o da bebida). Três anos mais tarde, por curiosidade, ela fumou maconha e detestou. Mas fumou porque quis fumar e não porque alguém falou que ela tinha que fumar. Eis aí a grande diferença. Assim, Marianna matava aula quase toda quinta para ir à Feirinha e sábado e domingo pracinha da igreja. 





quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A Feirinha

A primeira vez que Marianna foi na Feirinha, tudo era novidade. Primeiro porque teve que matar aula, já que estudava à noite. Quando entrou no ônibus, pode sentir um clima diferente. Por ser quinta-feira, 19:00 horas, o ônibus estava lotado. Não de pessoas cansadas e abatidas que vinham do trabalho, mas de pessoas com um brilho no olhar, com um riso franco, falando todas sem parar ao mesmo tempo. Quando chegou ao ponto da Feirinha o ônibus se esvaziou rapidamente. Não ficou ninguém com exceção do motorista e do cobrador, que se pudessem iam também. Marianna nunca tinha visto aquilo, pareciam que estavam indo para algum show, tantas eram as pessoas que se dirigiam para o mesmo lugar.



A Feirinha consistia em várias barracas de artesanato, bijoux, roupas, comidas e bebidas. E no final uma rua sem saída, onde pessoas vestidas principalmente de preto estavam sentadas na calçada, bebendo vinho em garrafas que passavam de mão em mão, outras com cervejas, garrafas de vodka e outras bebidas, muitos fumando também. De um lado muitos caras cabeludos que eram conhecidos por nomes como: Metaleiros e Headbanger. Do outro lado da rua uns caras com os cabelos espetados nas alturas conhecidos como: darks ou góticos. Além desses dois grupos distintos havia punks, pós-punk e pessoas aparentemente normais. Muitas meninas bonitas também. Todos convivendo juntos e em paz. Bem, de vez em quando surgia uma briga, mas era logo apartada. Essas pessoas se reuniam para beber, trocar ideias, cantar, namorar também. Marianna foi com sua irmã e um vizinho Saulo, que as apresentou para vários chegados dele. 



Essas pessoas fascinaram Marianna. Elas tinham um estilo de se vestir muito legal aos seus olhos: as meninas usavam maquiagem carregada, unhas pretas, calçavam lindos coturnos. Muitos exibiam suas tatuagens. Bem o ano era 1996. Hoje muita gente tem tatuagem. Naquela época era diferente. E a música! Marianna ouvia muito Legião Urbana. Mas Iron Maiden, só conhecia de nome. Nunca tinha escutado uma música sequer dessas e outras bandas que são tantas: Manowar, Black Sabbath, Metallica, Pantera, Ramones... E por aí vai.

Nessa quinta-feira Marianna colocou na cabeça que iria fazer uma tatuagem. Iria também aprender tudo sobre essas pessoas, suas músicas. Naquela época não tinha google. Internet era para poucos. Baixar músicas, nem pensar! Poucas pessoas tinham CD. Era o tempo do vinil. Era um caminho longo e árduo para entrar para o grupo, fazer parte de tudo aquilo. Ela simplesmente não queria parecer ignorante. Alguém que não tinha nada de bom pra falar. Porque havia muitos embalistas, meninas principalmente. Que só queriam ser vistas pelos caras, como pessoas legais, mas que no fundo não sabiam nada. 

Na volta para casa o ponto do ônibus estava cheio. Marianna segurou firme o braço da irmã para não perdê-la. De repente um ônibus parou e muitos correram para pegá-lo. Então quatro caras começaram a desenhar no ônibus com o dedo, tamanha era a poeira. Nesse instante apareceram policiais do nada e começaram a bater nos caras com cassetetes. Os caras não estavam fazendo nada demais. Marianna abraçou a irmã, outro ônibus chegou e elas subiram. Na confusão Saulo  sumiu, elas foram embora assim mesmo pois sabiam onde tinham que descer. Dentro do ônibus conheceram 05 rapazes. Paulo, Márcio, Rodrigo, Lucas e Cléber. Mais conhecidos como: Guerrero, Killer, Punk Doido, Mito e Ventania. 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Escolhas

As brigas com a mãe são constantes. Uma colega da escola aconselha Marianna a correr o mundo. Mas como ela ia viver? Sem amigos e sem dinheiro ela então um dia resolve fugir. Vai para a escola normalmente de manhã, mas na mochila além de cadernos leva também umas poucas peças de roupa. O mínimo necessário para começar uma vida em qualquer lugar. Mas ela tem apenas 15 anos. O único destino que este futuro lhe reservava seria fatalmente a prostituição.

 
Com a cabeça um pouco mais fria, analisa a situação: o que seria dos seus irmãos menores? Uma vez, uma velha tia disse que Marianna era a madeira que sustentava a casa de uma queda eminente. Ao invés de fugir resolve ir para a casa de uma colega depois da aula.
Como já estava tarde e Marianna não retorna, sua mãe resolve procurá-la. Vai na casa de uma colega e a mesma indica um local onde possivelmente ela poderia ser encontrada. Mas antes de chegar ao local vai perguntando para as pessoas na rua onde era o endereço da colega.
Sua mãe a encontra. Se faz de vítima, chora, faz um teatro. Marianna fica calada, tem vergonha da homossexualidade de sua mãe e esconde o verdadeiro motivo de sua fuga. A  ruim da história fica sendo ela. A mãe da colega a proíbe de voltar na sua casa e de conversar com sua filha. Em casa, mais uma surra e novas humilhações.
Marianna então resolve arumar um emprego em uma casa, como babá. Para não ter que ficar tanto tempo em casa. Para não ter que conviver com Soraia Sapatão. Também para ter seu próprio dinheiro. 

No domingo fala que vai à igreja, quando na verdade vai pra pracinha. Lá conhece uma moça da sua idade chamada Laura. Elas até que se parecem um pouco. Olhos verdes, cabelos cacheados. Mas Laura é loira (de farmácia, mas loira). As duas se tornam inseparáveis. Com Laura, Marianna aprende a fumar. Ela até que acha legal fumar. Todos os rapazes legais fumavam. Assim tinham um pretexto para conhecerem carinhas interessantes. "Acende meu cigarro" ou então "Você tem fogo?". 

O culto acabava, as duas voltavam para casa. A semana passava muito devagar, tamanha era a vontade de que domingo chegasse logo. E o tempo na pracinha era tão curto. Isso no começo, pois passado mais ou menos dois meses, Marianna ficava na rua até a meia-noite.  Ela era a Cinderela dos anos noventa. Depois passou a sair também aos sábados. Nessas saídas eventualmente surgia alguém que queria ficar com ela. Tudo muito superficial. Apenas curtição. Todos só queriam a casca. O interno não valia nada para ninguém. As outras moças que frequentavam a pracinha eram todas mais velhas e experientes. Laura, por exemplo, tinha tido uns três namorados. 

Marianna também queria conhecer alguém especial. Até mesmo porque no fundo ela  tinha receio de se tornar homossexual como sua mãe. O tal alguém especial estava demorando para aparecer e cansada de ser a única virgem da turma, ela experimentou o sexo pela primeira vez aos dezesseis anos. Não foi a noite dos sonhos como ela sonhava, com lençois de cetim em um quarto dos filmes que a gente vê na TV. O cara com quem Marianna perdeu sua virgindade nem acreditou que ela fosse virgem mais. Quando ele descobriu que ela estava falando a verdade, arrependeu-se. No dia seguinte Marianna teve medo que sua mãe descobrisse tudo. Descobrisse que ela tinha entregado seu bem mais precisoso para um completo desconhecido. Anos mais tarde Marianna o encontrou gordo, alcoólatra morando com uma mulher vinte anos mais velha. Aos poucos a pracinha perdia a graça. Era preciso conhecer lugares novos. Laura também já não era mais tão legal. Muito pelo contrário, quando Marianna via alguém interessante Laura pulava na frente e ficava com o cara.

Foi assim que Marianna conheceu a Feirinha nas quintas à noite. O ano 1996. Último ano do ensino médio. Marianna não abandonou a escola. Mais as notas caíram consideravelmente. No bairro não só ela como a irmã carregavam o estigma de serem filhas da mulher que vivia com Soraia Sapatão. Uma vez uma garota entendida deu em cima da sua irmã, com a desculpa de que se sua mãe era sapatão, ambas também eram.
Voltando para a feirinha de quinta-feira, a mesma acontecia em outra cidade. Era necessário pegar coletivo  que demorava meia hora para chegar na feirinha. E foi nessa feirinha que Marianna passou as melhores noites de sua vida.

domingo, 3 de outubro de 2010

Debaixo de um pé de amora

Se eu te contar a história de Marianna você chora. Porque eu chorei e choro até hoje ao me lembrar dela.

O ano era 1991. Marianna tinha treze anos. Foi um ano ímpar em sua vida. Seus pais moravam de aluguel e finalmente conseguiram comprar sua casa própria, financiada em 25 anos. A mudança para a periferia mudaria sua vida de tal forma que ela nunca mais seria a mesma.
Logo após a mudança viajou pela primeira vez com seu pai para sua terra natal no interior para conhecer seus tios e primos que só conhecia por fotos. A viagem de ônibus durou umas dez horas, pois eles se dirigiam para outro estado. Apenas Marianna, o pai e o irmão caçula. A mãe e a irmã ficaram, pois os recuros eram insuficientes para irem todos. Dessa viagem apenas a lembrança da represa de Furnas que divide os estados de Minas e São Paulo. E uma música do Guilherme Arantes, que até hoje fica tocando na cabeça de Marianna. "Sob um efeito de um olhar".


Na volta, veio a grande notícia. Seus pais se separaram. Até aí tudo bem, pois as brigas entre eles eram constantes, então era melhor cada um seguir o seu rumo.
Mas o pior estava por vir. A mãe de Marianna trouxe uma amiga para morar com eles. O apelido da amiga Soraia Sapatão.
Apesar da pouca idade, Marianna sabia que alguma coisa estava errada. As duas dormiam juntas na mesma cama. Aquilo definitivamente não estava certo. Se fosse Marianna a se interessar por uma menina, mas a mãe que tinha três filhos...A mãe que traía o pai descaradamente com vários homens: o açougueiro, o cobrador de ônibus, com um cara no clube...Agora da noite para o dia morando com Soraia Sapatão.

A mãe de Marianna conseguiu um emprego em uma fábrica. Trabalhava em três turnos. Os dois irmãos menores iam para escola, assim como Marianna. Soraia cuidava da casa. Arrumava tudo, limpava, lavava e cozinhava. Até que ela não era uma pessoa ruim. Seu problema era a bebida. Nos fins de semana Soraia bebia prá valer. Depois vinham as brigas que eram constantes. Agressões, tapas, socos e pontapés. 
Ao menos Soraia Sapatão nunca encostou um dedo em Marianna e na irmã. Encostar nos dois sentidos. De bater ou até mesmo bolinar.

Marianna chorava ao lembrar do pai. O pai tão bom que nunca bateu na mãe. A mãe é quem o dominava sempre. Todo dinheiro que o pai ganhava no mês, na época qua ainda eram casados, ia para a mão da mãe. Nem uma simples coca-cola o pai tomava.
Agora vinha Soraia e espancava a mãe. No fundo, no fundo a mãe gostava de apanhar. Pois era só mandar Soraia embora. Afinal de contas a casa era da mãe. Mas Soraia era quem cuidava de Marianna e dos irmãos, se ela fosse embora a quem caberia esse papel?
A vida de Marianna era um inferno. As horas boas eram quando o pai vinha buscá-los para passar o fim de semana. Eles faziam muitos passeios legais. Iam ao parque, na feira de artesanato, comiam fora.
O pobre pai não conseguia se acertar com nenhuma mulher. Isso pode ser atribuído ao fato de ter sido trocado por outra mulher. A estima do pai estava aos frangalhos, despedaçada e dilacerada. Marianna até que sonhava com o dia em que pai viria resgatá-la das garras da mãe louca. Mas esse dia nunca chegou.
Para conquistar a confiança da filha a mãe deixava Marianna sair à noite.

Dois anos se passaram. Marianna tem quize anos. O ano 1993. Marianna não tem um namorado, pois no bairro ela é conhecida como a filha da mãe que mora com Soraia Sapatão. Ela já ficou com alguns caras, mas só beijo na boca. Ela até que não é feia. Morena, cabelos cacheados, olhos verdes herdados da avó que Marianna não conheceu. Mas a auto-estima é que faz com que Marianna pense que não pode ser amada. 

A "baixo-auto-estima" melhor dizendo. Pois a mãe sempre jogou na cara que a vida dela era ruim por causa dos três filhos. A mãe não tem um pingo de pudor. Anda pela casa sem roupa, com as banhas aparecendo. Vai ao banheiro com a porta aberta. Pega nos seios e diz: "Tá vendo essas muxibas? Foram vocês três que chuparam! Por isso eles caíram! E você Marianna,  hoje seus peitinhos estão durinhos, mas um dia eles vão cair iguais aos meus".

Marianna torce para mãe estar errada. 
Com quinze anos Marianna está na oitava série. E é uma boa aluna . Apesar da vida instável que tem em casa. Isso não a derruba, pois ela é uma das melhores alunas. Querida pelos professores, invejada pelas colegas ricas, lindas e burras. Marianna não faz o menor esforço para estudar. Apenas presta atenção nas aulas. E sempre se saí bem nas provas. 
Os irmãos não tem a mesma sorte. Tomam uma bomba atrás da outra. Como uma forma de pedirem socorro. Em 1993 não existia conselho tutelar. E mãe louca vai destruindo os filhos.