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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando

Por que era tão difícil para Marianna admitir que estava ansiosa para rever Fernando? Durante aquela semana que se passou até  chegar novamente o dia de ir à Feirinha, Marianna se consumiu em ansiedade. Afinal de contas, ela não conseguia esquecer daquele beijo tão intenso que deu nele, meio que sem querer, por estar triste pelo destino de seus velhos amigos.

Fernando nasceu em 1974. Não havia campanhas anuais de vacinação. Fernando adquiriu paralisia infantil ainda criança e necessitava de muletas para se locomover.


Ao contrário de Marianna que tinha apenas uma tatuagem, Fernando tinha várias: um duende, uma rosa, o nome de uma banda de rock que eles gostavam entre outras tantas. Todas as tatuagens tinham sido feitas por Carlinhos, que era o tatuador mais requisitado que frequentava a  Feirinha. Os braços de Fernando eram fortes devido ao tamanho esforço de se locomover com as muletas, ele era branco, tinha os cabelos lisos, castanhos e ostentava um bigodinho que o fazia aparentar ser bem mais velho do que era na verdade. Marianna tinha nessa época dezoito anos e Fernando tinha vinte e dois. O ano era 1997. A diversão principal dos jovens era ir à Ferinha, trocar ideias com os amigos, beber, ouvir rock, enfim curtir a vida.

Juntamente com sua amiga Margarida, Marianna saiu de casa naquela noite na esperança de rever Fernando. Chegando na Feirinha a primeira pessoa que Marianna viu foi ele: em pé, meio que encostado em um carro que estava estacionado na rua, rodeado por meninas que o abraçavam e ficavam repetindo seu nome sem parar.

Marianna passou por ele e acenou com a cabeça e não parou para conversar. Margarida então falou:

- Você ficou com o Fernando, Marianna?

- Sim. Na semana passada que você não veio aqui. Por que você quer saber Margarida?

- Olha Marianna você é minha melhor amiga, então só quero o seu bem. E eu acho que você pode arrumar coisa melhor! Emendou Margarida.

- Margarida, você vai me desculpar, mas eu não concordo com você. Acho que ele é tão legal quanto qualquer um. Você está sendo preconceituosa só porque ele é deficiente físico. Ou você quer ficar com ele também? 

- Não é nada disso Marianna. É que... Bem eu não sei explicar.

- Eu gosto muito de você Margarida. Mas, deixe que da minha vida cuido eu. Já basta ter que aturar minha mãe me dando ordens o dia todo. Eu fico com quem eu quiser. 

- Então Marianna, não está mais aqui quem falou. Eu vou ali conversar com o pessoal, até mesmo porque o Fernando está vindo aí.


Fernando usava um  jeans rasgado, que era moda na época e uma camiseta preta. Estava sorrindo para Marianna quando falou:

- "Se Maomé não vai à montanha..." Por que você não parou para conversar comigo Marianna? Perguntou Fernando. - Eu estava querendo muito te ver.

- Bem, eu não queria atrapalhar. O papo entre você e aquelas meninas parecia estar tão bom.

- 'Peraí', elas são apenas minhas 'chegadas'. É impressão minha ou eu senti uma pontada de ciúmes no seu comentário?

- Por que eu teria ciúmes, afinal nós ficamos juntos apenas uma única vez. E eu devo confessar que eu gostei, você beija muito bem Fernando, de verdade.

- E você é muito linda! Com esses olhos verdes. Deve ter um monte de caras correndo atrás de você. Eu infelizmente não posso correr, mas vim aqui hoje só para te ver. 

- Engraçadinho! Como você fica fazendo piadas da sua própria deficiência?

- Eu já me acostumei, afinal não é o fim do mundo, nunca gostei de me fazer de vítima. Eu trabalho, estudo, dou um duro danado para ajudar minha mãe em casa. Eu bebo, fumo, danço. Tudo que você faz, eu também faço, só não ando de bicicleta.

- Eu também não sei andar de bike, nunca tive uma. Minha mãe nunca teve grana para comprar...


Fernando não deixou Marianna terminar de falar. Dessa vez foi ele quem a beijou. Marianna se deixou ficar em seus braços, parecia que não havia mais ninguém em volta dos dois. 













sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Cadeia

Marianna beijou Fernando e achou seu beijo muito bom. Apesar de ser deficiente físico, Fernando tinha uma "pegada", que fez Marianna tremer. Marianna se desculpou por ter dado aquele beijo em Fernando. Mas sua cabeça estava a mil. O mais importante agora era rever Killer.

Marianna estava determinada a visitar Killer na cadeia. Mesmo tendo sido preso por tráfico de drogas, Marianna não se importava, pois ele era seu amigo. As pessoas erram. O mais provável, pensava ela, era que seu ex-velho amigo se fascinou com a possibilidade de ganhar muita grana em pouco tempo. Se iludiu com o dinheiro fácil. Talvez se eles não tivessem se afastado, Killer jamais teria entrado em uma encrenca dessas, pois Marianna teria impedido que ele se envolvesse com pessoas ruins. Talvez os outros velhos amigos não tivessem sido mortos também. Talvez... No fundo Marianna sabia que isso era uma ilusão. Pois ainda não existia uma máquina do tempo capaz de fazer as pessoas voltarem atrás e tentarem consertar seus erros. 


O mais difícil para Marianna foi ter que dizer para sua mãe que iria na cadeia visitar seu velho amigo. Como Killer tinha sido pego pela polícia com uma grande quantidade de maconha, eles o levaram para uma delegacia de polícia cívil. O ano era 1997 e o crak ainda não tinha feito tantas vítimas, como nos dias de hoje. 

A mãe de Marianna esperneou e deu um show. Falou que iria ficar triste. Que Marianna iria se arrepender. Mas todas as palavras foram inúteis. Afinal sua mãe foi a grande responsável pelo fim da amizade da filha com os garotos da DPT. Mas Marianna conhecia Killer, sabia que ele não era uma pessoa ruim, bem no fundo ele era um cara bom, que nunca teve muitas oportunidades na vida. Ele não era um assassino, como seu apelido queria dizer. Ele era apenas mais um jovem pobre, fruto de uma sociedade mesquinha, fruto de um lar destruído: o pai de Killer bebia muito e um dia sua mãe cansou daquela vida, largou os filhos com o pai e sumiu no mundo. Killer era o filho do meio de cinco irmãos. Seu nome verdadeiro era Márcio. 

Marianna saiu de casa e foi até a delegacia. Como estava muito ansiosa, chegou uma hora antes do horário de visita. Chegando lá Marianna mentiu e disse que era prima de Killer, então foi colocada em uma sala com outras cinco mulheres, que visitavam seus maridos. Mal sabia ela, o que estava para vir. A policial feminina pediu que as seis mulheres tirassem a roupa toda. Um por uma, as mulheres tiveram que agachar, pois poderia haver drogas escondidas em suas partes íntimas. Enquanto isso outra policial revistava as roupas das mulheres. Marianna sentiu tanta vergonha, que quase chorou. As outras mulheres pareciam estarem acostumadas com aquilo, que nem olhavam umas para as outras. Depois elas se vestiram e foram introduzidas para dentro do pátio da delegacia. 


Marianna jamais vai se esquecer da cena: Haviam quatro celas que caberiam no máximo dez pessoas em cada uma delas. No entanto haviam aproximadamente uns cem homens amontoados como bichos, havia também um monte de roupas penduradas em um varal improvisado e um odor desagradável de urina e fezes. Marianna pensou como eles faziam para dormir, comer e tomar banho. Ela ficou tão atordoada que pensou que fosse desmaiar e que nunca iria encontrar Killer no meio de tantos homens, que a comiam com o olho. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, Marianna finalmente conseguiu localizar seu amigo. Ele veio até ela sorrindo. Só aquele sorriso valeu tamanha humilhação pela qual ela acabara de passar.  Bem de perto Marianna pode enxergar uns piolhos andando na cabeça de Killer, mas não disse nada. 


- Que bom que você veio me ver Sereia (era assim que ele a chamava). Disse Killer. Você trouxe cigarro para mim? 

- Nnnnão. Só tenho meu maço aqui, mas você pode ficar com ele se quiser. Gaguejou Marianna. Nem passou pela minha cabeça que você precisava de alguma coisa. Só queria te ver. Depois que Fernando me contou que os outros morreram e que você estava aqui, resolvi te ver.

- E sua mãe deixou você vir?

- Deixar ela não deixou, mas eu vim assim mesmo. 

- Que bom! Ninguém veio me ver. Minha mãe nem sabe se estou vivo ou morto. Minhas irmãs devem estar tristes pra caramba.

- Você deveria ter pensado nelas antes de se envolver com isso! Esbravejou Marianna. Desculpa! Mas é triste ver você aqui. Lembra quando íamos na Feirinha? Quando tomávamos todas? E agora, você está aqui privado de sua liberdade, por causa de maconha Killer.

- Mas eu vou sair e vou mudar. Nunca mais vou querer saber de maconha. Eu juro!

- Você não precisa jurar nada para mim. Eu vou embora. Te cuida! 

Marianna foi embora e prometeu para si mesma que nunca mais voltaria ali. Afinal seu dever estava cumprido: Fez uma boa ação ao visitar seu amigo.  Depois sentiu raiva de si mesma e impotente por não ter como tirar seu amigo dali. Pensou em encontrar Fernando. Fernando e seu beijo incrível. 

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O destino dos velhos amigos

Marianna nunca teve um relacionamento que durasse mais do que um mês. Em geral ela se cansava dos rapazes com muita facilidade, porque sempre detestou pessoas fúteis e vazias. Em geral os caras que conhecia estavam mais preocupados em exibir seus carros, em contar vantagens sobre quantas meninas tinham ficado.
Marianna quando encontrava um cara legal que gostasse de ler como ela, que fosse bonito, sensível, inteligente, e tivesse uma conversa legal, esse cara simplesmente já tinha namorada.
Ela até que não era feia: Olhos verdes, morena, cabelos cacheados. Seu grande defeito sempre foi ser perfeccionista ao extremo, exigindo muito dos outros e mais ainda de si mesma. Além de ser muito possessiva. E bota possessiva nisso.


Sua amiga Margarida ficava muito nervosa, quando Marianna tentava corrigir as pessoas.  As vezes quando estavam em um grupo conversando e alguém falava algo errado tipo: "você alembra do fulano?" ou "hoje eu amontei um móvel". Um dia Margarida não aguentou e explodiu com Marianna:

- Deixe outra pessoa mais imbecil corrigir os outros. Afinal quem é que nunca erra?
Margarida mesmo com menos estudo que Marianna, lhe ensinou algo que ela jamais esqueceu. 


Um dia Marianna estava na Feirinha com Margarida, quando surgiu Fernando. Esse rapaz tinha uma deficiência física. Quando criança teve paralisia infantil e necessitava de um par de muletas para se locomover.  Tinha os braços fortes por usar as muletas diariamentente e exibia neles várias tatuagens feitas por Carlinhos.
Fernando morava na mesma vila que os caras da DPT. Apenas não andava com eles. E foi Fernando quem deu a notícia para Marianna de como estavam seus antigos amigos:

Guerrero (o certo é escrever Guerreiro, mas ele escrevia errado mesmo) morreu vítima de bala perdida em um tiroteio na vila. Punk Doido virou pastor de igreja por dois meses, desistiu de pregar, saiu para o tráfico de drogas e foi morto por gangues rivais. Ventania foi cruelmente assassinado, asssim como Mito. Killer estava preso, pois tinha sido pego pela polícia quando trazia consigo uma grande quantidade de maconha (o ano era 1997 e o crak ainda não tinha invadido os morros). Marianna pensou seriamente em visitar Killer na delegacia. Sua mãe iria ficar maluca se soubesse que sua filha iria visitar um "bandido" na prisão.



Quando Fernando lhe contou o ocorrido Marianna chorou em seu ombro, seus lábios ficaram muito próximos, sem querer Marianna beijou Fernando. E que beijo...



domingo, 7 de novembro de 2010

Garçonetes

Não era só na Feirinha que Marianna gostava de beber. O bar do Tiãozinho também era ponto de encontro das pessoas que gostavam de rock. Marianna e sua amiga Margarida eram capazes de beber a noite inteira, se o papo estivesse legal. A amizade entre as duas era muito forte. Onde Margarida ia, Marianna ia também. Existia um acordo velado entre as duas: uma não podia ficar com o cara da outra, mesmo que a outra não quisesse mais saber do rapaz. Ao contrário de Marianna que completou o ensino médio, Margarida tinha estudado somente até a sétima série. Com a morte de sua mãe, Margarida passou a cuidar dos irmãos menores. 


Existia uma senhora que possuía um pequeno bar chamado Cantina D'Itália devido as massas que eram servidas lá: lasanha, canelone, ravioli, capeletti, espaguete entre outras. O bar ficava muito cheio nos fins de semana, onde as mesas eram espalhadas na calçada. Sabendo que lá precisava de pessoas para trabalhar, Marianna chamou Margarida para que as duas tentassem um emprego de garçonete. Ambas foram admitidas e começaram em uma sexta-feira. 


Uma coisa é você se sentar num bar e beber. Outra coisa é você servir as outras pessoas. Margarida e Marianna ralaram com nunca naquela noite, além de receberem muitas cantadas também. Parecia que a noite não ia acabar nunca mais! A vontade das duas era perguntar aos clientes se eles não iriam embora para casa dormir. Quando deram por si, o dia já estava amanhecendo. O bar fechou, a dona pagou o combinado e as duas foram embora para casa. Marianna dormiu no sábado até uma hora da tarde, acordou e foi até a casa de Margarida, que já estava de pé. Sem perder tempo, as duas foram até o bar do Tiãozinho. Naquela tarde gastaram tudo o que ganharam com fichas de música, cerveja e cigarro. Em geral elas preferiam vinho. A cerveja é mais barata, mas é preciso uma quantidade maior de cerveja para a pessoa ficar alta. As pernas das duas amigas estavam doendo por terem passado a noite toda em pé, prometeram que não voltariam para trabalhar no bar. Assim encerrou-se a curta carreira de garçonete de Marianna e Margarida. 


terça-feira, 2 de novembro de 2010

Fim de um ciclo

Amparada por um par de muletas encontramos novamente a mãe de Marianna, que tinha acabado de chegar do pronto socorro. Ela falou "até babar", que Marianna ia se arrepender amargamente no futuro, por ter feito aquela tatuagem. Bem, lembrem-se que estamos no ano de 1996. Hoje em dia a tatuagem se popularizou bastante. Artistas da TV exibem suas tattos por aí, cantores, modelos, jogadores de futebol completam os adeptos dessa arte que começou com povos muito antigos que pintavam o corpo para lutar. Até muito pouco tempo tatuagem era sinônimo  de presidiário, bandido, prostituta, e por aí vai. 
Mas triste mesmo ficou o pai de Marianna quando soube da notícia. Mesmo tendo se separado de sua mãe, Marianna nunca deixou de amar o pai. Seu velho pensava que Marianna poderia ser reprovada em algum concurso público. Mas Marianna nunca pensou em entrar para a polícia militar ou o corpo de bombeiros. 


Uma pessoa se tatua por vários motivos. O motivo de Marianna foi de pelo menos uma vez na vida, fazer valer a sua vontade. Ela estava cansada de ser uma marionete nas mãos de sua mãe. 
Mas ao contrário do que imaginou, fazer dezoito anos não mudou muito sua situação. Economicamente falando ela era ainda muito dependente de sua mãe. Morava em sua casa. Ajudava nas despesas, sempre que podia, mas a quantia que ganhava era tão irrisória, que dificilmente conseguiria se manter sozinha. 
Concluir o segundo grau também não era garantia de um futuro promissor e cursar uma universidade era um sonho que ia ficando cada vez mais longe. Hoje em dia, as faculdades são tantas. Há tantos cursos e opções. Só não estuda, quem não quer. Naquele tempo como uma filha de uma operária, divorciada, iria conseguir fazer um curso superior.  
Com o fim das aulas Marianna se viu finalmente livre, com a noite toda para ela. Não teria mais que matar aula toda quinta-feira para ir à Feirinha. Poderia ir sempre que quisesse. Em uma noite que estava na Feirinha com sua amiga Margarida, Marianna conheceu um DJ que fazia um som toda sexta-feira em uma boate que tocava rock dos anos 80. Ele estava cercado por meninas que o idolatravam, mas ele escolheu Marianna para presentear com  cortesias para entrar de graça na boate. 




Sempre que ia na Feirinha, Marianna tinha no bolso somente a grana para pagar o ônibus e um maço de cigarros. Chegando lá encontrava seus chegados, juntava uns reais de cada um, comprava uma garrafa de vinho e bebia até ficar legal.