Marianna e César eram apenas mais um casal de jovens que se preparava para passar a noite sentados no Cruzeiro. César levou lanterna e um cobertor muito grosso. O vento parecia assobiar, mesmo sendo março estava muito frio. O copo de choconhaque aquecia as mãos de Marianna. Um pouco abaixo deles, alguns jovens tocavam violão. Cantavam "Tente outra vez" do Raul Seixas ao lado de uma fogueira.
Marianna e César tiveram então o seguinte diálogo:
- O céu é lindo aqui. Eu nunca vi tanta estrela.
- Eu também não. Dá para ver até a poeira cósmica. Em São Paulo tem tanta poluição, tantos prédios, que às vezes até me esqueço que existe céu.
- O vento está muito frio, vai acabar atrapalhando meu cabelo. Será que nós vamos ver algum disco voador?
- Seu cabelo está lindo. Você acredita em disco voador?
- Eu vou responder sua pergunta, com outra pergunta. Você acredita que na nossa imensa galáxia, somente o nosso "planetinha" minúsculo é habitado?
- Olhando por esse lado, é muita pretensão nossa mesmo. Mas você acredita em vida inteligente?
- Até mais inteligente do que a nossa. Mas diferente do que a gente vê nos filmes de ficção científica.
- Olha Marianna uma estrela cadente! Faça um pedido!
- Essa já se foi, teremos que esperar a próxima.
- Se você pudesse pedir algo, o que pediria?
- Pediria para não ter uma vida medíocre.
- Que pedido estranho. Como assim ? Uma "vida medíocre"?
- Eu tenho medo de que daqui há alguns anos, quando eu olhar para trás eu perceba que errei. Perceba que tudo que eu fiz, foi em vão. A verdade é que eu queria fazer algo que realmente valesse a pena.
- "Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena"! Mas você já faz, você tem um emprego bom, com um bom salário. Tem um filho perfeito. Você é perfeita. Tem uma casa. Quantas pessoas você acha, que conseguem comprar sua própria casa com 23 anos?
- Financiada em 15 anos. Não se esqueça.
- Que seja!
- Sabe o que eu queria mesmo?
- O quê?
- Eu queria voltar a estudar.
- E por que não volta?
- Quem vai ficar com meu filho Bruce? Eu saio todo dia para trabalhar às 05:30 e chego às 19:00 horas. Meu filho fica com uma moça que mora lá perto de casa. Imagina se do trabalho, eu for para Faculdade? Eu vou chegar prá lá de meia-noite.
- Desse jeito, você nem ia ver seu filho direito. Ele ia estar sempre dormindo.
- O pior é quem estuda a noite, geralmente tem aulas nos sábados e muito trabalho para fazer nos domingos. Depois de quatro anos, meu filho vai me perguntar: "Quem é você? Eu não te conheço!"
- Por que sua mãe não olha ele para você?
- Eu e minha mãe temos nossas diferenças.
- Mas é ela quem ficou com ele, para você vir para cá, não é mesmo?
- É verdade. Foi ela que insistiu para eu viajar. Para "recarregar as baterias". Mas você não entende...
- Olha, assim como você eu só tenho o 2º grau. Não sou muito inteligente. Mas se você explicar eu posso tentar entender.
- Minha mãe sempre teve um tipo de comportamento que eu não gosto. Ela sempre foi muito autoritária. Se ela ficar com o Bruce para eu estudar, daqui a pouco ela vai querer mandar de novo em mim. Tudo tem que ser do jeito dela sempre. Não há dialogo.
- E o seu pai?
- Meu pai se separou dela, quando eu ia fazer 13 anos.
- E ele não pode ficar com o seu filho?
- Meu pai cada dia está com uma mulher diferente. Desde que ele se separou da minha mãe. Já arrumou umas sete mulheres, uma em cada ano. Hoje ele vive em uma pensão.
- Leva ele para morar com você. Assim ele vai ter onde morar e aproveita e cuida do neto dele.
- É uma ideia. Eu posso te contar uma coisa?
- Conta.
- É uma coisa que eu nunca contei para ninguém.
- Pode contar.
- Outro dia eu fui em um velório.
- Algum parente seu faleceu?
- Não. O cara que morreu foi assassinado brutalmente. Roubo seguido de morte.
- E como você conheceu esse cara?
- Ele organizava gincanas, quando eu era adolescente. As gincanas eram em prol das crianças carentes.
- Eu também participei de gincanas, lá em Santo André.
- Depois que as gincanas acabaram ele foi nomeado para um cargo de confiança na prefeitura da cidade onde eu morava. Ele era muito talentoso, assim ele foi feito Mestre de Cerimônias. Ele era gay e morava sozinho em uma casa grande, linda, parecia um sítio. Então um cara se aproximou dele e tal, só para matar e roubar. Barbarizaram o coitado.
- Hoje em dia é difícil saber em quem confiar.
- Mas eu cheguei no velório e encontrei um antigo professor meu.
- O professor que falou com você, para um dia conhecer São Thomé?
- Não. Esse era meu professor de física do 2º grau. Muito doido ele. O professor que eu encontrei foi meu professor de história do 1º grau. Seu nome é Antônio. Mas todos o chamavam de Ti Tonho.
- E você foi apaixonada por ele?
- Não. Ele é gay também. Eu fui apaixonada pelo professor de matemática.
- Toda menina já gostou de um professor. Mas o que tem esse Ti Tonho?
- Ele estava com mais três amigos. Assim que ele me viu, ele correu, me deu um grande abraço apertado e me apresentou para os caras dizendo: "Essa é Marianna. A melhor aluna que eu já tive! A mais brilhante e inteligente" Então ele se virou e me perguntou: "E o que você anda fazendo da vida, se formou em quê?". Eu respondi que não tinha curso superior.
- E o que ele disse?
- Ele falou que era um desperdício eu ter parado de estudar, que eu tinha um futuro lindo pela frente. Eu quis morrer. Eu concluí a 8ª série em 1993. Nós estamos em 2002. Quase todos meus antigos colegas se formaram, alguns estão indo para a segunda graduação.
- Mas por que você se casou tão nova?
- Nem me pergunte. Foi a pior burrice da minha vida. Eu sempre gostei de estudar, nunca precisei estudar muito para passar. Os professores explicavam, eu prestava atenção e aprendia com facilidade. Depois fazia as provas e só tirava "notão". Isso no 1º grau. No 2º grau, eu caí na bebedeira, matava aula demais, me formei meio que "nas coxas". E seus pais? Eu falando de mim, sem parar, me fale um pouco sobre você.
- Não tem muito pra falar de mim. Meus pais morreram. Eu moro com meus três irmãos. Somos dois casais: Meu irmão Carlos tem 28 anos, depois eu César de 24, Cristiane de 23 e Cássia de 18 anos. Um cuida do outro. Todos nós trabalhamos. Eu trabalho em um grande hipermercado lá em Santo André. Estou de férias, resolvi vir para cá conhecer a cidade.
- Hipermercado deve pagar bem...
- Bem mal. Quando eu te conheci, lá no Vale das Borboletas, eu lembrei da minha irmã Cristiane. A gente só chama ela de Ane. Eu podia te chamar de Anna, o que você acha?
- Anna não. Me chama de Marianna.
- Marianna. Maria e Anna.
- Meu nome foi uma homenagem para minhas avós. Maria era minha avó materna. Anna era minha avó paterna.
- Será que a gente vai se encontrar de novo um dia?
- Provavelmente não.
- Mas nós poderíamos namorar...
- A distância? Nem pensar!
- Mas você é categórica, mesmo! Por que não?
- Porque os relacionamentos precisam de presença, de toque, de beijos e abraços...
- Eu prometo que te escrevo muitas cartas.
- Mas acontece que eu não posso beijar cartas, você beija papel?
- Nunca tentei, mas para tudo tem a primeira vez.
- Eu acho que bebi muito choconhaque e fumei muito cigarro de palha também...
- O dia está amanhecendo...
Não tardou muito e o sol apareceu. Muito devagar, os primeiros raios surgiram no horizonte. O céu que até então estava escuro foi clareando aos poucos e ficando avermelhado. Haviam poucas nuvens, o que contribuiu para que o espetáculo fosse ainda mais sublime. O sol era um presente de Deus, aquecendo a Terra e nascendo todos os dias, mesmo que uns não queiram, muitos querem: Ser felizes e fazerem os outros felizes também.